Há bocado fez amor sem realmente o fazer. Deixou-se estar quieta enquanto ele a abraçou, lhe acariciou os seios e depois, devagar, lhe escalou o corpo com beijos e um pénis estranhamente erecto. Com o tempo os beijos dele foram perdendo o sabor, pensou ela enquanto contava os traços de luz desenhados na parede. Ele veio-se...e depois foi-se, engolido pela prescrição que o obriga a ir trabalhar todos os dias às nove da manhã.
Enfraquecida, a luz vai morrendo devagar na parede do quarto depois de ter passado pelos buracos da persiana. Era tão bom que o dia de hoje pudesse ser diferente dos outros. Mas não é, e depois desta contemplação da morte natural dos raios de Sol, o dia dela não será muito diferente de uma receita médica qualquer que manda tomar medicamentos a horas exactas.
Há uma normalidade nesta vida que não pode ser normal. É a normalidade de casar, ter filhos, comprar uma casa e talvez um carro sem haver um depois. É como se esse fosse o último estágio da vida e, talvez por isso, ela tenha sorrido tanto no dia em que se casou. Eram os últimos sorrisos. Depois as conversas embriagadas de amor transformaram-se em discussões sobre a conta em que deve cair a factura da luz e do gás, o sonho de ter filhos transformou-se numa prisão cheia de fraldas sujas e choros de bebé a meio da noite e, por fim, os quarenta e tal canais por cabo substituíram as longas noites passadas com os amigos.
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Ele já chegou ao escritório mas ainda não ligou o computador. Não consegue deixar de pensar na mulher que lá fora, enquanto o semáforo para peões estava vermelho, olhou para ele do outro lado da rua. Depois cruzaram-se na passadeira e sorriram um ao outro, ela com um brilho nos olhos de amêndoa e ele com timidez. E por falar em passadeira, foda-se, a vida não tem sido mais do que isso: uma passadeira entre duas margens: a da casa e a do emprego. Tudo o resto é passagem. Tudo o resto é paisagem.
Ela já aqueceu o leite do miúdo no microondas durante doze segundos na potência máxima, já lavou os lençóis onde ele mijou mais uma vez durante a noite. Já os pôs a secar e já tirou do frigorífico a carne para descongelar até à hora do jantar. Só ainda não se ligou a ela mesma. Não consegue deixar de pensar em como a sua vida se transformou apenas numa margem: a da casa, e tudo o resto está na outra margem tão distante.
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Os insectos povoam os candeeiros redondos da rua em órbitas incertas. Incerta é também a noite mas, pela primeira vez, isso sabe-lhes bem. Ele telefonou e inventou uma desculpa qualquer para não ir jantar a casa, ela ganhou coragem e deixou o filho na vizinha. Talvez daqui a pouco se cruzem numa passadeira qualquer e sorriam um para o outro como já não se lembram de o fazer. Talvez até percebem que têm vivido em margens opostas. Talvez...entretanto, a carne em cima da bancada da cozinha já está descongelada e esquecida. »
2 comentários:
Quase pós-realista
Gostei
;)
Não sabia que te dedicavas a este tipo de escrita
Não esta nada mau
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